
já uma vez escrevera: “convencera-se que se conseguisse captar um sorriso, que fosse, um olhar de afecto ou mesmo de paixão, isso talvez o inspirasse na ficção que desesperadamente procurava. uma ficção de si próprio. uma ficção de gente apaixonada e feliz, misturada com sonhos e afectos de que tanta falta sentia. o desespero apossara-se dele, sem lhe deixar já grande margem para uma auto-estima que se ia desgastando e transformando em momentos cada vez mais penosos e incapazes de serem ultrapassados.”
mas isso era num daqueles textos curtos, que insistentemente procurava assinar, para ninguem mais ler… uma inglória busca do leitor perdido, que obviamente nunca iria encontrar, porque ambos se cruzavam em espaços e tempos diferentes… agora, não!… este poderia ser o início de qualquer coisa em grande, de qualquer coisa consistente e acabada, que não se ficasse apenas por ideias e se pudesse alargar por uma trama com história, com romance… com enredo!… mas lá no fundo, ele sabia que o texto que ora se construía, iria terminar daqui a pouco, num ponto final ou em reticências, que tão bem demonstravam a insustentabilidade da ideia…
a sua escrita, tinha obviamente a ver consigo próprio, com o seu percurso e a sua vaga objectividade sobre um rumo de vida, mais essencialmente sobre um projecto de afectos que nunca conseguia concretizar, apesar dos inúmeros apelos e aparentes oportunidades…
agora era o tempo de esperar, de conter em si todos os sentimentos e libertar apenas aqueles que eventualmente lhe dessem confiança para conviver com as amizades que tinha vindo a colecionar. reconhecia em si uma rara capacidade para seduzir as pessoas de quem gostava, mas essa sedução era sempre receosa e titubeante, apenas o suficiente para que os outros vissem em si uma pessoa agradável, de bom trato, bom coração e muita emotividade. e quando alguém lhe enchia a alma de paixão e desejo, logo se retraía, num silencioso registo de contração e num defensivo sombreado de emoções subconscientemente calculadas, debruçadas sobre um abismo de dúvidas e incertezas, fragilidades e insegurança, apavorado na perspectiva de que a sua frontalidade na revelação dos seus mais profundos sentimentos afectivos, destruissem a amizade que receava ferir ou mesmo destroçar.
havia dias em que se retirava, às vezes até de si próprio, isolava-se num casulo de espaços e pessoas, que circulavam à sua volta, mas ele permanecia protegido pelo silêncio, o seu silêncio interior, apenas entrecortado por pensamentos dispersos e recalcantes, onde tentava encontrar um caminho para chegar a qualquer lado mais reconfortante e onde existissem carícias, olhos brilhantes, sorrisos e beijos, ou apenas um leve relampejar de êxtase e prazer explícito. há tanto tempo que não trocava um afecto físico com ninguém, um afago, um explorar a face e o corpo duma mulher, apenas porque seria isso a vontade de ambos, sem projectos ou perguntas, dúvidas ou certezas, apenas porque isso fosse como que um ímpeto incontido e incontível, que tivesse dentro de si a naturalidade da vida como ela deveria ser…
era então que pensava e ensaiava a certeza de que nenhuma história de amor o incluiria, nem nas linhas nem nas entrelinhas de qualquer enredo dum romance. o romance que lhe parecia destinado, era um romance incompleto, sempre solitário e triste, do qual ele acabava sempre por sair antes do capítulo final e tudo terminava nas eternas reticências da sua condição…
era por isso, na derradeira ficção de si próprio, que se quedava, cada vez mais seguro de que o sorriso da vida que procurava, não lhe ia surgir, nem mesmo das suas amizades mais resguardadas e sentidas, mais apaixonadas ou desejadas… no fundo, a sua paixão esgotava-se num desejo silencioso que nunca ganhava voz ou gesto, atitude ou risco. não arriscava porque temia. não libertava a voz porque se sufocava num silêncio cauteloso. não agia porque temia que um gesto, apenas, de maior afectividade, fosse mal interpretado e selasse o fim duma amizade tão bela… e retraía-se cada vez mais. eliminava-se em cada dia que passava. fazia apenas a gestão dessa afectividade, no pânico constante de não entender se as portas se lhe abriam ou apenas deixavam a nesga suficiente para manter a amizade que construira…
às vezes tinha saudades de si próprio. não saudades temporais, mas antes saudades, tão somente temperamentais. saudades dos tempos que poderia ter vivido e não viveu. saudades de coisas que poderia ter feito e não fez. saudades até daquilo que poderia ainda viver e jamais viveria. saudades de afectos, emoções e paixões que nunca experimentara e poderia nunca vir a vivenciar. saudades de amizades que poderiam ter migrado para paixões ou que simplesmente se ficaram por ali, porque não tivera a coragem de se abrir e proclamar o que sentia. saudades de nunca ganhar a força bastante para dali arrancar para outra coisa que lhe poderia trazer mais felicidade… às vezes sentia saudades dos outros, dos amigos, dos mesmo muito amigos, não porque eles não estivessem sempre presentes, mas porque tinha medo que se esfumassem no mundo intrincado dos afectos que nunca tivera a coragem de explorar…
entre aquilo que tinha sido e aquilo que agora era, sobrava-lhe aquilo que poderia ter sido e nunca fora, mas também a angústia de nunca vir a ser o que não era. às vezes olhava para dentro de si e via um enorme buraco negro de sentimentos e afectos que poderiam ter sido e dificilmente viriam alguma vez a ser. um arco-íris a preto e branco que o impedia de almejar ser mais de si mesmo e menos do outro retraído que sempre fora.
sentia saudades de si mesmo… saudades dos afectos que nunca conseguira transformar numa magia de sentimentos partilhados… num gesto, num afago, num abraço, que mesmo assim já lhe chegariam para matar as saudades incontornáveis de alguém que fosse… sentia muitas saudades da vida… sentia enormes saudades de alguns amigos… sentia, por exemplo saudades inexplicáveis duma amiga que partira a meio da sua vida, porque já não aguentava a dor… mas, sentir saudades daquilo que nunca se tivera, era ainda mais doloroso porque em vez da morte, era a vida que lhe provocava tamanha nostalgia…
(ernani)